domingo, 24 de julho de 2011

Recado aos homens




"Um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino tudo me daria
Do que eu quisesse ter
Que nada, minha porção mulher que até então se resguardara
É a porção melhor que trago em mim agora
É o que me faz viver"
(Gilberto Gil - "Super-homem, a canção")

Em pleno século XXI e em tempos de homofobia, falar sobre o lado feminino do homem ainda é um tabu. Para os machistas e homofóbicos de plantão, é quase uma confissão de homossexualidade (ou de submissão às mulheres). Nada mais distante da realidade.

Já em 1905, nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", Freud apontava para uma bissexualidade constitucional psíquica nos seres humanos. O que isso significa? Que todo mundo vai sair por aí transando com pessoas de ambos os sexos? Não, em absoluto. Significa que, falando numa linguagem simples e acessível, todos os seres humanos possuem traços/características do sexo oposto em sua constituição psíquica, em sua personalidade.

Jung, à sua maneira, também falou sobre isso quando postulou os conceitos de anima e animus. Luiz Paulo Grinberg, no livro "Jung, o homem criativo" afirma que, assim como alguns hormônios e características físicas femininas estão presentes no homem (e vice-versa), o mesmo ocorre com as características psicológicas: anima é o nome que Jung deu para personificar os elementos femininos inconscientes presentes no psiquismo do homem, enquanto animus personifica os aspectos masculinos inconscientes da mulher. Interessante notar que "anima" significa "alma", em latim...

Portanto, meus caros machistas e homofóbicos, vossa postura, longe de torná-los mais homens ou mais machos, só os torna seres incompletos e amputados. Somente aceitando e integrando seu lado feminino, vocês poderão, de fato, tornar-se homens completos (ou super-homens, segundo a canção de Gil) e serem capazes de conviver com a alteridade, com o diferente.

Imagem retirada daqui. Trata-se de uma pintura do artista russo Vasily Kafanov, feita especialmente para o encarte do álbum "Machina - The Machines Of God", da banda The Smashing Pumpkins.

domingo, 17 de julho de 2011

DESDE QUE NÃO ESTÁS COMIGO

Oito meses já. Oito meses e onze dias e, se olhar para o relógio, digo-te o número das horas: oito meses, onze dias e dezoito horas. Tu no patamar, com duas malas, a carregares no botão do elevador que chegou num instante para mim e demorou eternidades para ti pelo modo como batias a ponta do sapato no chão e eu no capacho a ver-te, demasiado cheio de palavras para conseguir falar. Depois o elevador parou, abriste a porta, empurraste as malas para dentro e foste-te embora sem olhar. O perfume aguentou-se um bocado por ali. Quando deixei de o sentir fechei a porta. Passada uma semana desapareceu do apartamento também. Sobrou metade de um brinco numa gaveta. Plástico e arame com uma conchinha na ponta. Fui buscar um martelo e acabou-se o brinco. O problema foi a mossa que deixei na cómoda.
Estou sentada numa esplanada cheia de medo que o dia termine. Assusta-me voltar para uma casa onde já não há cheiros. O incenso, o jantar, a garrafa de vinho aberta, um som de jazz, a tua voz. Uma casa habitada por outros que já não somos nós. Não podemos ser. Nós partimos para mais uma viagem, arrastando as malas para o carro de manhã cedo com sorrisos cúmplices. Prefiro imaginar-nos assim. Eternizar-nos assim. A dor de te saber de olhos postos num futuro que não me inclui, é demasiado física, avassaladora. Pesa tanto como o silêncio negro à volta dum vulcão.
Oito meses, imagine-se. Apetece-te um dos iogurtes fora de prazo no frigorífico? Ninguém consegue ligar a torradeira. Há fatias de pão que continuam entaladas no interior do mecanismo, invisíveis, excepto um cogumelozinho de bolor que surge de vez em quando do metal amolgado. Para a semana, quando a minha mãe me vier visitar, não vai encontrar-me: estarei no interior da torradeira como as fatias de pão. Quando muito hão-de ver o cogumelo de bolor de uma lágrima a surgir do metal amolgado.

Textos meus e de António Lobo Antunes

Fotos: Nick Knight

domingo, 10 de julho de 2011

Ternura



Há um toque do feminino que transpira-lhes na alma - em sincronismo inspiram para além das palavras. Conferem um vento suficientemente forte para se jogarem e planarem em seus tules esvoaçantes - degradê é a cor da amizade que paira no ar na mesma órbita.

Vivem numa sintonia de pensamentos que refletem loucura e autêntica coragem para caminharem rumo ao desconhecido até chegarem a Quem-vai-lá-não-volta* e, mesmo assim, voltarem de mãos dadas  estampando os sorrisos mais bonitos. Transmitem cumplicidade singular que transcendem o silêncio num toque de ternura.

Percebem logo quando uma delas está triste ou não está bem... Compartilham sintonia e afinidade, aprendem juntas, se cuidam e se alegram. Respiram a alegria de saber que se abraçam da mesma matéria que as salvam da dor, da ilusão e do inevitável. A tristeza pode lhes fazer dispersas, até se fazem às vezes desconexas, mas na verdade conhecem a fundo exatamente o que se passa entre elas.

Sabem que voar é coisa que exige muito mais que uma brisa. Quando se aquietam, estão na espera do vento, recusam-se a abrir as asas no vácuo. Deixam claro para que ninguém se engane: possuem asas neon; dotadas de luz bem forte capaz de roubar o olhar de quem as vê.  


domingo, 3 de julho de 2011

Tâmara de Lempicka - Compartilhando segredos, 1928.
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Agora que a súbita consciência completa de meu terrível sofrimento eterno tomou conta de mim, preciso saber se você compreende isso e o porquê de eu escrever de vez em quando: se não quiser mais escrever para mim, mande um cartão-postal em branco, sem assinatura, alguma coisa, qualquer coisa, para me mostrar que não rasgou minhas palavras e as queimou antes de saber que sou simultaneamente pior e melhor do que pensava. Sou humana o bastante para querer conversar com o único outro humano que importa neste mundo.

Suponho que eu tenha ficado mais surpresa com a intensidade que me liga a você (de modo que nenhum dos dois tem o poder de romper com isso, apesar de todo o ódio, maldade, revolta e de todas as amantes do mundo) e com o fato de você me deixar assim, dilacerada, com o coração despedaçado, sem anestesia nem pontos; meu sangue vital a escorrer pela mesa nua, sem que nada vicejasse. Bem, ele continua escorrendo. E me pergunto por que teme me ver mesmo nos momentos disponíveis: pois eu tenho fé em você, e não posso crer (como um dia desejei) que se trata apenas de conveniência, para não coincidir com encontros com outras mulheres. Por que você precisa ser tão intransigente?

Posso entender, se você está pensando que ficar comigo aumentará meu vínculo com você ou me deixará menos livre para procurar outra pessoa, mas agora sei, como você precisa saber, que sangrei tanto a ponto de me exaurir, e que a mera abstinência das lâminas não pode me curar. Então, por que o tabu? Peço que pergunte isso a si mesmo. E se tiver coragem ou consciência diga-me por quê.

Quando eu estava fraca, havia uma razão; agora não vejo nenhuma. Não vejo por que não posso morar em Paris, fazer o mesmo curso e estudar francês ao seu lado. Não sou mais perigosa, fora de mim. Por que torna nosso caso (que já é um inferno, e temos o bastante para nos testar nos anos cruéis que virão) tão absoluta e completamente rígido? Posso aceitar até o horror mais penoso de me soltar novamente no sentimento, sabendo que ele deverá esfriar outra vez, se puder pelo menos acreditar que está tornando uma pequena fração do tempo e espaço melhor do que seria se ficássemos distantes por teimosia, tendo tão pouco tempo para estarmos juntos.

Eu lhe peço para ponderar essas coisas, no coração e na mente, pois vejo agora uma questão subitamente profunda: por que foge de mim, sabendo que eu tornaria a vida mais rica, isso sim, apesar dos pesares? Você disse um dia que eu queria algo que não poderia me dar. E quero mesmo. Mas agora compreendo o que é (antes, não sabia) e percebo também que meu amor e minha fé por você não podem ser apagados nem anulados pela bebida ou quando me atiro na cama de outros homens. Descobri isso, sei disso, e o que me resta?

Compreensão. Amor. Dois mundos. Sou simples o suficiente para amar o desabrochar e considerar tolo e terrível que você chegue a negá-lo a nós, sendo maravilhoso o fato de pertencer somente a nós dois. Com essa estranha noção que me invade, como clarividência, sei que estou segura de mim e de meu amor enorme e assustadoramente atemporal por você; que sempre será. Mas, de certo modo, para mim é mais difícil, pois meu corpo está preso à fé e ao amor, e sinto que jamais poderei viver com outro homem; isso significa que preciso tornar-me uma mulher dedicada ao celibato (já que não posso ser freira). Se eu me dedicasse a uma profissão, como advogada ou jornalista, tudo bem.

Texto: Sylvia Plath

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