domingo, 3 de julho de 2011

Tâmara de Lempicka - Compartilhando segredos, 1928.
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Agora que a súbita consciência completa de meu terrível sofrimento eterno tomou conta de mim, preciso saber se você compreende isso e o porquê de eu escrever de vez em quando: se não quiser mais escrever para mim, mande um cartão-postal em branco, sem assinatura, alguma coisa, qualquer coisa, para me mostrar que não rasgou minhas palavras e as queimou antes de saber que sou simultaneamente pior e melhor do que pensava. Sou humana o bastante para querer conversar com o único outro humano que importa neste mundo.

Suponho que eu tenha ficado mais surpresa com a intensidade que me liga a você (de modo que nenhum dos dois tem o poder de romper com isso, apesar de todo o ódio, maldade, revolta e de todas as amantes do mundo) e com o fato de você me deixar assim, dilacerada, com o coração despedaçado, sem anestesia nem pontos; meu sangue vital a escorrer pela mesa nua, sem que nada vicejasse. Bem, ele continua escorrendo. E me pergunto por que teme me ver mesmo nos momentos disponíveis: pois eu tenho fé em você, e não posso crer (como um dia desejei) que se trata apenas de conveniência, para não coincidir com encontros com outras mulheres. Por que você precisa ser tão intransigente?

Posso entender, se você está pensando que ficar comigo aumentará meu vínculo com você ou me deixará menos livre para procurar outra pessoa, mas agora sei, como você precisa saber, que sangrei tanto a ponto de me exaurir, e que a mera abstinência das lâminas não pode me curar. Então, por que o tabu? Peço que pergunte isso a si mesmo. E se tiver coragem ou consciência diga-me por quê.

Quando eu estava fraca, havia uma razão; agora não vejo nenhuma. Não vejo por que não posso morar em Paris, fazer o mesmo curso e estudar francês ao seu lado. Não sou mais perigosa, fora de mim. Por que torna nosso caso (que já é um inferno, e temos o bastante para nos testar nos anos cruéis que virão) tão absoluta e completamente rígido? Posso aceitar até o horror mais penoso de me soltar novamente no sentimento, sabendo que ele deverá esfriar outra vez, se puder pelo menos acreditar que está tornando uma pequena fração do tempo e espaço melhor do que seria se ficássemos distantes por teimosia, tendo tão pouco tempo para estarmos juntos.

Eu lhe peço para ponderar essas coisas, no coração e na mente, pois vejo agora uma questão subitamente profunda: por que foge de mim, sabendo que eu tornaria a vida mais rica, isso sim, apesar dos pesares? Você disse um dia que eu queria algo que não poderia me dar. E quero mesmo. Mas agora compreendo o que é (antes, não sabia) e percebo também que meu amor e minha fé por você não podem ser apagados nem anulados pela bebida ou quando me atiro na cama de outros homens. Descobri isso, sei disso, e o que me resta?

Compreensão. Amor. Dois mundos. Sou simples o suficiente para amar o desabrochar e considerar tolo e terrível que você chegue a negá-lo a nós, sendo maravilhoso o fato de pertencer somente a nós dois. Com essa estranha noção que me invade, como clarividência, sei que estou segura de mim e de meu amor enorme e assustadoramente atemporal por você; que sempre será. Mas, de certo modo, para mim é mais difícil, pois meu corpo está preso à fé e ao amor, e sinto que jamais poderei viver com outro homem; isso significa que preciso tornar-me uma mulher dedicada ao celibato (já que não posso ser freira). Se eu me dedicasse a uma profissão, como advogada ou jornalista, tudo bem.

Texto: Sylvia Plath

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9 comentários:

  1. Lempicka é apontada como um ícone da emancipação feminina na pintura. O destaque às formas voluptuosas é um de seus traços mais fortes.

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  2. Quando Sylvia se matou, sei do que ela se emancipou: da tortura da fantasia. Aquele sorriso cínico de marido que dizia sempre à mesa do café da manhã que ele nunca seria seu. E não foi. Talvez isso tenha provocado seu engradecimento como escritora, mas não como mulher, eis que se acovardou na sombra de um amor que nunca deveria ter cruzado o seu caminho, mas cruzou. Dizem que escrever exuda os cortes, cura. Mas a sabedoria de suas palavras não foi o bastante para reiventar as terminações da alma que ela teve amputada. E o mais triste, não foi o bastante para salvá-la.

    Do semicerrar de suas pálbebras, restou uma vida destruída, ceifada. E contudo, não posso culpá-la. Nunca vamos saber o que a matou. Se foi ele, ou foram as palavras.


    Grande estréia Leo.

    Te abraço com...dor.

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  3. Grande comentário Pipa querida.

    Te abraço com...cura.

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  4. Uau.

    Não sei se mais me tocou a Sylvia ou a Pipa.

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  5. Excelente escolha, querido Leo!

    A grande questão é essa: querer algo que não podemos obter...

    Desejar o impossível é a dor mais doce que se pode sentir.

    Beijo.

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  6. Com enorme carinho
    agradeço de coração por compartilhar
    momentos tão agradaveis e tão importantes para mim.
    Certamente vera essa mensagem em outros blogs
    mais isso é tudo que posso fazer hoje.
    E jamais vou deixar de agradecer a bondade
    de estar sempre no meu blog acariciando meu corção.
    Agradeço e reconheço que Deus nunca nos deixa sozinho.
    Um beijo no corção,Evanir.

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  7. Como diz Pipa, nunca vamos saber o que a matou, Leo. Mas quase consigo vê-la naufragando no gélido inverno Londrino, morrendo um pouco todos os dias...
    "Even among fierce flames
    The golden lotus can be planted"

    Excelente escolha querido Leo.

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  8. De fato, faço minhas as palavras da Alícia. O comentário da Pipa foi tão profundo e deliciosamente doloroso quanto o texto da Sylvia.

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  9. A Sylvia, a Pipa, os comentários, o texto. Tudo tão inteiro e tão tátil, que inunda o canto do olho.

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