sábado, 8 de outubro de 2011

...durante a noite acordei com tempo fresco, frio o bastante para chá quente e moletom. Acordei para alimentar nosso filhote de passarinho. Ontem, sentindo em mim uma estranha histeria sufocante - em parte, creio, por não escrever prosa - contos, meu romance - saí para dar uma volta com Ted, apesar do ambiente denso e úmido. Ele parou sob uma árvore, na rua. Ali, no chão, virado de costas, estendendo as asas magrinhas num esforço desesperado, havia um filhote de passarinho, caíra do ninho e sofria convulsões que pareciam espasmos de moribundo. Fiquei impressionada com seu sofrimento, revoltada. Ted o levou para casa, aninhado nas mãos em concha, enquanto o passarinho nos espiava com seus olhos negros brilhantes. Forramos uma caixa de papelão com um pano de prato e pedaços de papel macio, para tentar imitar um ninho, e o colocamos lá dentro.




O passarinho tremia sem parar. Parecia desequilibrado, naquela posição, de costas. A todo momento esperávamos que seu peitinho magro parasse de arfar. Mas isso não aconteceu. Tentei alimentá-lo com pão molhado no leite, usando um palito de dentes, mas cuspiu tudo, não engoliu. Depois fomos ao centro e compramos carne moída na hora, parecia um monte de minhocas, pensei. Quando subimos a escada o passarinho piou de dar dó e abriu o bico amarelo o mais que pôde, de tal modo que nem se via a cabeça por trás da goela escancarada. Sem hesitar, coloquei um pedaço de carne razoável na boca do passarinho. O bico se fechou em meu dedo, a língua parecia querer sugar meu dedo e a boca abriu-se novamente, vazia. Alimentei-o animadamente, com carne e pão e ele comia com frequência e apetite, dormindo nos intervalos de duas horas entre uma refeição e outra e parecia melhorar a cada momento, comportando-se como um passarinho normal. Mesmo diminuto, era uma manifestação da vida, da sensibilidade e da identidade. Quando eu estiver pronta para ter um filho, será maravilhoso. Mas só no momento certo.

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Sylvia Plath, Os Diários...

domingo, 28 de agosto de 2011

Rabiscando Horizontes


Arte: © Gabriel Pacheco

Indecisa. Achei que tivesse virado um fantasma nas últimas semanas. Tinha medo de fechar os olhos e não te encontrar mais. Passei a noite em claro acendendo e apagando a luz do abajur, vendo a caneta se virar de um lado para o outro com simulada displicência. Sobre a escrivaninha, uma fila de rabiscos que dobravam os quarteirões, tentando decifrar um fio de voz que parecia vindo de uma cisterna abissal. Como é difícil calar a voz de dentro. Mas não consigo me arrepender das decisões que tomei em relação ao amor. Elas me levaram até você. Às vezes fico tateando o escuro, à procura de palavras que se derramam pelos cantos da boca como uma nascente de cobre líquido. Não existem. Tenho medo de me calar e as palavras acabarem morrendo em meus lábios, esfarinhando-se em sopros de sombra inclinados. Há paixões que honram quem as inspira. Quando voltar, a gente podia se ver no mar. Naquele tom azul celeste que você tanto gosta. Mergulho no passado, recordando-me do naufrágio de nossas vidas. Nado contra a maré, que me leva insistentemente para o lugar onde havíamos estado. Naquele mesmo mar de esperanças que refluem dia após dia, afastando-nos do ponto final. O coração é a única coisa que nos une. Cada batida é uma martelada surda que lança nos ares uma poeira reluzente de lapidação de esmeraldas. E para onde quer que eu vá o pó colorido das boas lembranças que conservo de nós dois, rebrilha. Vou indo, amor. Preciso terminar a sua estátua. Não quero acordar amanhã e pensar em você como se nunca tivesse existido. Vou imortalizá-lo em mim para que nada mais possa nos separar. Esta ausência é só um pesadelo amor, vou estar aqui quando você acordar. Tem dias, que meus olhos escurecem como se não tivessem fundo. Dói. Mas recobro a serenidade e descubro que dor é a única certeza de que este amor ainda está vivo. E nós, só estamos aqui para possibilitar.



P.S.: Eu te amo, amor. Em agosto, te amarei ainda mais.


Para sempre,


domingo, 21 de agosto de 2011

A flor



Imaginemos um quebra-cabeça; duas pessoas se unem para montá-lo. As peças sortidas despertam enorme curiosidade. É um desafio e uma aventura agrupá-las. Na medida em que a imagem vai se formando a dupla vai sentindo mais segurança e intimidade ao encaixá-las; visualizam um cenário: o amor. Mas faltam peças, o quebra-cabeça está incompleto.

A superfície de agrupamento tem fundo escuro. Os espaços vazios representam a sombra. A sombra é a ausência de luz necessária para uma flor desabrochar. Cultivar a sombra é nutrir o vazio que se precisa para florescer.

Só é possível florescer no vazio dando sentido à imaginação. A flor é a peça que falta para completar o cenário, mas obtê-la é vê-la murchar. Ela existe envolta de mistério, transgressão e perigo. Sem ela os ventos não teriam liberdade para circular no jardim. Embora seja tentador agrupá-la às outras peças, corre-se o risco de destruir todo resto.

Os ventos são o eixo de equilíbrio do nosso cenário. Permitem imaginá-lo completo e em outras estações. Conferem a incerteza necessária para que a flor exista e permaneça lá sem ser arrancada, temos a consciência de sua beleza e optamos por apreciá-la somente, validando e confirmando nossa escolha pela falta.

(...) Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que se voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor. E não é prêmio, por isso não envaidece, amor não é prêmio, é uma condição concedida exclusivamente para aqueles que, sem ele, corromperiam o ovo com a dor pessoal. Isso não faz do amor uma exceção honrosa; ele é exatamente concedido aos maus agentes, àqueles que atrapalhariam tudo se não lhes fosse permitido adivinhar vagamente. (Clarice Lispector: O ovo e a galinha. In: Felicidade Clandestina, p. 55)


domingo, 24 de julho de 2011

Recado aos homens




"Um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino tudo me daria
Do que eu quisesse ter
Que nada, minha porção mulher que até então se resguardara
É a porção melhor que trago em mim agora
É o que me faz viver"
(Gilberto Gil - "Super-homem, a canção")

Em pleno século XXI e em tempos de homofobia, falar sobre o lado feminino do homem ainda é um tabu. Para os machistas e homofóbicos de plantão, é quase uma confissão de homossexualidade (ou de submissão às mulheres). Nada mais distante da realidade.

Já em 1905, nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", Freud apontava para uma bissexualidade constitucional psíquica nos seres humanos. O que isso significa? Que todo mundo vai sair por aí transando com pessoas de ambos os sexos? Não, em absoluto. Significa que, falando numa linguagem simples e acessível, todos os seres humanos possuem traços/características do sexo oposto em sua constituição psíquica, em sua personalidade.

Jung, à sua maneira, também falou sobre isso quando postulou os conceitos de anima e animus. Luiz Paulo Grinberg, no livro "Jung, o homem criativo" afirma que, assim como alguns hormônios e características físicas femininas estão presentes no homem (e vice-versa), o mesmo ocorre com as características psicológicas: anima é o nome que Jung deu para personificar os elementos femininos inconscientes presentes no psiquismo do homem, enquanto animus personifica os aspectos masculinos inconscientes da mulher. Interessante notar que "anima" significa "alma", em latim...

Portanto, meus caros machistas e homofóbicos, vossa postura, longe de torná-los mais homens ou mais machos, só os torna seres incompletos e amputados. Somente aceitando e integrando seu lado feminino, vocês poderão, de fato, tornar-se homens completos (ou super-homens, segundo a canção de Gil) e serem capazes de conviver com a alteridade, com o diferente.

Imagem retirada daqui. Trata-se de uma pintura do artista russo Vasily Kafanov, feita especialmente para o encarte do álbum "Machina - The Machines Of God", da banda The Smashing Pumpkins.

domingo, 17 de julho de 2011

DESDE QUE NÃO ESTÁS COMIGO

Oito meses já. Oito meses e onze dias e, se olhar para o relógio, digo-te o número das horas: oito meses, onze dias e dezoito horas. Tu no patamar, com duas malas, a carregares no botão do elevador que chegou num instante para mim e demorou eternidades para ti pelo modo como batias a ponta do sapato no chão e eu no capacho a ver-te, demasiado cheio de palavras para conseguir falar. Depois o elevador parou, abriste a porta, empurraste as malas para dentro e foste-te embora sem olhar. O perfume aguentou-se um bocado por ali. Quando deixei de o sentir fechei a porta. Passada uma semana desapareceu do apartamento também. Sobrou metade de um brinco numa gaveta. Plástico e arame com uma conchinha na ponta. Fui buscar um martelo e acabou-se o brinco. O problema foi a mossa que deixei na cómoda.
Estou sentada numa esplanada cheia de medo que o dia termine. Assusta-me voltar para uma casa onde já não há cheiros. O incenso, o jantar, a garrafa de vinho aberta, um som de jazz, a tua voz. Uma casa habitada por outros que já não somos nós. Não podemos ser. Nós partimos para mais uma viagem, arrastando as malas para o carro de manhã cedo com sorrisos cúmplices. Prefiro imaginar-nos assim. Eternizar-nos assim. A dor de te saber de olhos postos num futuro que não me inclui, é demasiado física, avassaladora. Pesa tanto como o silêncio negro à volta dum vulcão.
Oito meses, imagine-se. Apetece-te um dos iogurtes fora de prazo no frigorífico? Ninguém consegue ligar a torradeira. Há fatias de pão que continuam entaladas no interior do mecanismo, invisíveis, excepto um cogumelozinho de bolor que surge de vez em quando do metal amolgado. Para a semana, quando a minha mãe me vier visitar, não vai encontrar-me: estarei no interior da torradeira como as fatias de pão. Quando muito hão-de ver o cogumelo de bolor de uma lágrima a surgir do metal amolgado.

Textos meus e de António Lobo Antunes

Fotos: Nick Knight